Livro Digital - Operações de Paz de Caráter Naval

Livro digital - Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar Centro de Operações de Caráter Naval

Centro de Operações de Paz de Caráter Naval AMEAÇAS E DESAFIOS PARA A PAZ NO MAR

Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar Centro de Operações de Paz de Caráter Naval

Rio de Janeiro / 2020

Expediente Revista:

Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

Produção:

Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC)

Contra-Almirante (FN) Renato Rangel Ferreira Capitão de Corveta (FN) Alexandre de Menezes Villarmosa

Organizadores:

Projeto Gráfico:

Agência 2A Comunicação

Almirante de Esquadra ILQUES BARBOSA JUNIOR, Almirante de Esquadra (FN) ALEXANDRE JOSÉ BARRETO DE MATTOS, Almirante de Esquadra MARCELO FRANCISCO CAMPOS, Almirante de Esquadra ALIPIO JORGE RODRIGUES DA SILVA, Almirante de Esquadra (FN) ALVARO AUGUSTO DIAS MONTEIRO, Vice- Almirante (FN) PAULO MARTINO ZUCCARO, Vice-Almirante JOSÉ AUGUSTO VIEIRA DA CUNHA DE MENEZES, Vice-Almirante (FN) CARLOS CHAGAS VIANNA BRAGA, General de Divisão ROLEMBERG FERREIRA DA CUNHA, Embaixador RUBENS ANTÔNIO BARBOSA, Contra-Almirante (FN) RENATO RANGEL FERREIRA, Contra-Almirante (FN) ROGÉRIO RAMOS LAGE, Sra. GISELA VIEIRA, Sr. RICHARD MORRIS, Tenente-General CARLOS HUMBERTO LOITEY, Contra-Almirante EDUARDO AUGUSTO WIELAND, Contra-Almirante NARCISO FASTUDO JUNIOR, Capitão de Mar e Guerra BONIFACE KONAN. Capitão-Tenente (FN) Dutra, Capitão-Tenente (RM2-T) Flavia Barros, 1° Tenente (RM2-T) Mariana Müller, 1° Tenente (RM2-T) Paula Fernandes, 1° Tenente (RM2-T) Jaqueline Carvalho, 1° Tenente (RM2-T) Caio Vinícius. Capitão-Tenente (FN) Dutra, Capitão-Tenente (FN) Leandro Gomes, Capitão- Tenente (RM2-T) Flavia Barros, 1º Tenente (RM2-T) Mariana Müller, 1º Tenente (RM2-T) Paula Fernandes, 1º Tenente (RM2-T) Jaqueline Carvalho, 1º Tenente (RM2-T) Ana Grangeia, 1º Tenente (RM2-T) Rafael Dantas, 1º Tenente (RM2-T) Vinicius Oliveira, 1º Tenente (RM2-T) Itiene Nogueira, 1º Tenente (RM2-T) Caio Vinícius, 2º Tenente (RM2-S) Cássia.

Autores:

Traduções:

Colaboradores:

Ano:

2019

O61

Operações de paz de caráter naval : ameaças e desafios para a paz no mar / [Organizado por] Contra-Almirante (FN) Renato Rangel Ferreira, Capitão de Corveta (FN) Alexandre de Menezes Villarmosa. – Rio de Janeiro : Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo, 2020.

132 p. ; 22,5 cm. ISBN 978-65-990227-1-5

1. Nações Unidas – forças de paz. 2. Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo. I. Ferrei- ra, Renato Rangel. II. Villarmosa, Alexandre de Menezes. III. Título

CDD 355.357

Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

Apresentação Contra-Almirante (FN) RENATO RANGEL FERREIRA

Em 31 de outubro de 2019, a Marinha do Brasil (MB), por meio do Comando-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais (CGCFN) e do Centro de Operações de Paz de Caráter Naval (COpPazNav), realizou o Seminário Internacional de Operações de Paz de Caráter Naval. A ideia de realizar este seminário decorreu de duas principais demandas. Uma delas foi a de organizar e compartilhar os conhecimentos acumulados com a participação, desde 2011, da Marinha do Brasil no comando da Força-Tarefa Marítima (FTM) da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL). Nesses nove anos, a Marinha indicou os Almirantes que exerceram os Comandos da Força-Tarefa multinacional e desdobrou os respectivos navios-capitânia. Sem dúvidas, a preparação e o emprego desses militares e meios possibilitaram que fosse gerada uma considerável quantidade de conhecimento específico sobre o emprego de missões de paz no mar. A outra demanda dizia respeito ao entorno estratégico nacional. Tendo como linha de aproximação o tema contemporâneo das ameaças assimétricas em ambientes marítimos. Uma ação de diplomacia naval, na forma de um seminário, ao propiciar o intercâmbio de experiências e apresentações de novas perspectivas, contribuiria, também, para a construção de parcerias e para o fortalecimento da inserção política e estratégica do Brasil, particularmente em relação aos países lindeiros ao Atlântico Sul. O seminário foi, então, estruturado sobre três eixos principais. O primeiro explorou as ameaças no ambiente marítimo. O segundo, os desafios – operacionais e logísticos – de se conduzir a paz no mar. O último, voltado para o ensino e o treinamento das Forças Navais. Ao

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todo, participaram vinte autoridades cujas apresentações originaram os artigos que compõem a presente obra. Da parte do público, registrou-se a presença, no Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC), de centenas de autoridades, universitários, civis e militares, nacionais e estrangeiros, de um total de 21 países. Todos com o nobre objetivo de debater ideias, compartilhar experiências e boas práticas, bem como propor soluções para problemas enfrentados por missões de paz em um cenário tão complexo como o marítimo. Cabe ainda o registro de que foram, também, as citadas demandas que levaram o COpPazNav - unidade de treinamento da MB para operações de paz, particularmente aquelas de caráter naval – a preparar e conduzir, na mesma época do seminário, o primeiro Curso Internacional de Operações de Paz de Caráter Naval ( United Nations Maritime Task Force Course ). Recentemente, este curso foi certificado pelo Departamento de Operações de Paz da ONU, consolidando o centro como uma referência mundial no treinamento para missões de paz, sendo o primeiro e único a receber esse reconhecimento na área proposta. Antes de encerrar esta breve apresentação, aproveito para agradecer as palavras proferidas pelo Embaixador Rubens Barbosa, autor do artigo que compõe o prefácio desta obra, que ressalta a grande importância da discussão dos temas acima descritos e a participação do Brasil na reflexão, capacitação e segurança no Atlântico Sul. Da mesma forma, fica registrada a ilustre abertura do seminário e a introdução desta obra realizadas pelo Almirante de Esquadra Ilques Barbosa Junior, Comandante da Marinha, bem como o encerramento do evento e a conclusão do presente livro realizadas pelo Comandan- te-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, o Almirante de Esquadra (FN) Alexandre José Barreto de Mattos.

Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

Prefácio

Embaixador RUBENS BARBOSA

Na definição do Conceito Estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como uma área geoestratégica prioritária, mas nao se exclui totalmente a pos- sibilidade de sua atuação “onde possível e quando necessário”, caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com a incorporação dos assuntos do Atlantico Sul no escopo estratégico da organização. Em pronunciamento recente, o atual ministro da defesa Nacional, João Gomes Cravinho, observou que “a segurança do espaço euro -Atlântico tem de ser pensada a partir das pontes que o Atlântico permite criar e para as quais Portugal tem um posicionamento privilegiado para contribuir ativamente”. Dentro desse entendimento, Portugal está criando o Centro para a De- fesa do Atlântico (CeDA) na ilha dos Açores. O CeDA tem como objetivo a reflexão, a capacitação e a promoção da segurança no espaço atlân- tico. O Centro pretende tornar-se um fórum multinacional que contará com a participação de peritos, civis e militares de países localizados na bacia atlântica ou com interesses nesse espaço. Localizado na Ilha Terceira, em parte das instalações da base norte-a- mericana, e em Lisboa, o CeDA deverá focalizar inicialmente as dinâmi- cas de insegurança no Golfo da Guiné e na África Ocidental, estando, contudo, vocacionado para trabalhar todas as temáticas relevantes para a segurança do Atlântico de Norte a Sul, de Leste a Oeste e onde a capa- citação no domínio da defesa possa contribuir positivamente. Irá estabe- lecer parcerias, desenvolver e implementar projetos de capacitação que permitam aos Estados ribeirinhos do Atlântico reforçar as suas capacida-

des na prevenção, combate e mitigação das ameaças transnacionais tais como o tráfico de drogas, de seres humanos e de armas, pirataria e as- salto à mão armada contra navios, a pesca ilegal, não regulamentada e não declarada. Também a poluição, as alterações climáticas e a resposta de emergência estão na mira; e, numa fase posterior poderão surgir as ameaças cibernéticas, entre outras possíveis a se prevenir. O balizamento conceitual do Centro está ainda em desenvolvimento, com contribuições dos países atlânticos envolvidos, entre os quais o Brasil. No que concerne às principais atividades do CeDA, para além de pro- jetos de capacitação através de parcerias com a ONU, OTAN, União Eu- ropeia, União Africana, entre outros, o Centro trabalhará igualmente na busca, tratamento e análise de informação; na elaboração de estratégias de capacitação e doutrina; na monitorização de ameaças transnacionais e na implementação de projetos. O Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, deverá realizar um Se- minário para apresentar, discutir e divulgar o CeDA. Esse evento con- tará com especialistas, nacionais e estrangeiros, civis e militares, que aprofundarão os requisitos e a missão fundamental do Centro e, como estudo de caso, serão analisadas as várias dimensões dos desafios à segurança na região do Golfo da Guiné. No início de 2020, prevê-se, nos Açores, uma primeira ação de for- mação de uma rede de peritos internacionalmente reconhecidos, que possam dar continuidade ao trabalho de capacitação junto dos quadros civis e militares, bem como das Forças de Defesa e Segurança, dos países do Golfo da Guiné. Com a constituição do CeDA, Portugal pretende dar corpo à ideia de contribuir para manter o Atlântico como um espaço de paz e segurança internacional e de trabalhar com parceiros atlânticos na identificação de contribuições para esse objetivo. O Brasil manifestou preocupação, porque não foi informado pre- viamente da criação do Centro e pela intenção explicitamente indica- da pelo Conselho de Ministros da OTAN de empregar o Centro como

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plataforma para a Organização e para a União Europeia com vistas à segurança de todo o Atlântico (incluindo o Atlântico Sul, em especial o Golfo da Guiné). O Brasil, nessa região, está presente e desenvolve esforços para o enfrentamento da pirataria. O Brasil sempre deixou claro sua reserva no tocante às iniciativas que incluam também a Bacia Atlântica e, via de consequência, o Atlântico Sul, como área de atuação da OTAN. O sul do Atlântico é área geoes- tratégica de interesse vital para o Brasil. As questões de segurança rela- cionadas às duas metades desse oceano são distintas e devem merecer respostas diferenciadas – tão mais eficientes e legítimas quanto menos envolverem organizações ou Estados estranhos à região. A Política Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a Defesa Nacional e amplia o horizonte estraté- gico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul e a África Ocidental e Meridional. Por essa razão, o Brasil não deveria ignorar essa iniciativa. Seria de nosso interesse acompanhar de perto a definição de como o Centro vai atuar. Por outro lado, o governo dos EUA decidiu designar o Brasil como “aliado prioritário extra-OTAN”, elevando a parceria estratégica com os Estados Unidos a um novo patamar de confiança e cooperação. Esse sta- tus é conferido a um número restrito de países, considerados de interesse estratégico para os EUA, e os torna elegíveis para maiores oportunida- des de intercâmbio e assistência militar, compra de material de defesa, treinamentos conjuntos e participação em projetos. Embora não tenha uma relação direta com a OTAN, o novo status do Brasil recomendaria o acompanhamento do que está ocorrendo na Organização. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, esteve em Portugal recentemente e foi informado da criação do Centro. Para manter a prio- ridade sobre o Atlântico Sul, como previsto na Estratégia Nacional de Defesa, o Brasil deveria participar da criação do Centro e oferecer sua contribuição na definição de suas atribuições e formas de atuação.

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Sumário

Introdução

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Parte I

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Capítulo 1 – Atuação da Organização Marítima Internacional (IMO) na área e proteção marítima Gisela Vieira Capítulo 2 – Tecnologia, peacekeeping e combate às ameaças assimétricas: oportunidades e desafios em contextos complexos e instáveis Ricardo Oliveira dos Santos Capítulo 3 – Ameaças assimétricas no ambiente marítimo e manutenção da paz: soluções para promover a segurança nacional no contexto marítimo que contribuem para a estabilidade nacional, regional e global Richard Morris

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Capítulo 4 – Ameaças assimétricas no ambiente marítimo Contra-Almirante (FN) Rogério Ramos Lage

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Parte II

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Capítulo 5 – Da segurança para a manutenção da paz: desafios logísticos para operações marítimas Capitão de Mar e Guerra (Marinha) Boniface Konan Capítulo 6 – Logística marítima nas operações de manutenção da paz: superando os desafios de manter a paz no mar Tenente-General Carlos H. Loitey Capítulo 7 – Brasil na Força-Tarefa Marítima da UNIFIL: transformando desafios logísticos em oportunidades político-diplomáticas Danilo Marcondes de Souza Neto Capítulo 8 – Desafios e Oportunidades em uma Operação de Paz de Caráter Naval – a FTM-UNIFIL Contra-Almirante Eduardo Augusto Wieland

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Parte III

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Capítulo 9 – Operações de paz de caráter naval: treinando com foco no futuro Vice-Almirante (FN) Carlos Chagas Vianna Braga Capítulo 10 – A preparação da Marinha do Brasil para a UNIFIL Vice-Almirante José Augusto Vieira da Cunha de Menezes Capítulo 11 – Treinando e ensinando a paz no mar na perspectiva do Diretor do Centro Inter-regional de Coordenação (CIC) Contra-Almirante Narciso Fastudo Junior Capítulo 12 – Operações de paz de caráter naval: treinando e ensinando a paz no mar Vice-Almirante (FN) Paulo Martino Zuccaro Capítulo 13 – O papel do Ministério da Defesa nas operações de paz General de Divisão Rolemberg Ferreira da Cunha

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Conclusão Almirante de Esquadra (Fuzileiro Naval) Alexandre José Barreto de Mattos Comandante-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais

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Autores

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Seminário Internacional de Operações de Paz de Caráter Naval – 31 de outubro

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Lista de Siglas e Abreviaturas

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Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

Introdução Comandante da Marinha ALMIRANTE DE ESQUADRA ILQUES BARBOSA JUNIOR

Com satisfação, saúdo as autoridades civis e militares, brasileiras e de nações amigas, assim como os profissionais de defesa que participaram do Seminário Internacional de Operações de Paz de Caráter Naval, em 31 de outubro de 2019, e deram suas contribuições para a elaboração desta obra, tão relevante para o adequado desenvolvimento da paz e da segurança no mar. A Marinha do Brasil e a Organização das Nações Unidas realizaram nessa data um grande evento, no qual foram debatidas ideias, comparti- lhadas experiências e boas práticas, bem como discutidas soluções para desafios enfrentados por missões de paz em um cenário tão complexo como o marítimo. Em um momento especial de encontro de especialistas em Opera- ções de Paz, foi realizado o lançamento do livro “13 anos do Brasil na MINUSTAH - lições aprendidas e novas perspectivas”. Essa publicação re- gistrou as contribuições oferecidas pelos palestrantes do seminário ocor- rido no Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC), em 2017, que marcou o fim da exitosa participação das Forças Armadas bra- sileiras e de outras nações amigas naquela missão de paz no Haiti. O seminário que originou este livro, por sua vez, de caráter interna- cional, teve o propósito de compartilhar as experiências adquiridas pelas diversas instituições convidadas no trato com as ameaças e desafios para a paz no mar. De nossa parte, oferecemos as lições que foram aprendidas com a participação da Invicta Marinha de Tamandaré na Força-Tarefa Ma- rítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano. Seguindo os assuntos abordados durante o seminário, esta publicação foi organizada em três partes: “Ameaças Assimétricas no ambiente maríti- mo e peacekeeping ”; “Operações de Paz de Caráter Naval: vencendo os desafios de manter a paz no mar”; e “Operações de paz de caráter naval: treinando e ensinando a paz no mar”. Cada parte foi composta utilizando-

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se os artigos e transcrições das apresentações de especialistas nacionais e estrangeiros nos temas em pauta, com oficiais generais ligados à ONU e chefes de organizações congêneres palestrantes no seminário. Na primeira parte, o livro irá explorar o impacto das Ameaças Assimétri- cas à paz e à segurança no mar. Serão apresentados os resultados dos de- bates sobre temas como a necessidade de ampliação da consciência situ- acional marítima para a rápida identificação dessas ameaças, que podem tanto estar relacionadas a aspectos climáticos e seus efeitos no mar, quando à ação humana ou estatal, como o tráfico de drogas, pirataria, terrorismo e crimes ambientais, semelhante ao ocorrido no nordeste brasileiro em 2019. Em particular, referente a este lamentável episódio, durante o período do seminário ainda estávamos investigando as causas do surgimento de óleo em nossas águas e combatendo os efeitos desta agressão sem precedentes, tanto pela sua extensão como pelo impacto ambiental e socioeconômico. Esse conjunto de ameaças revela a importância do fortalecimento da co- operação e da construção de soluções comuns a serem implementadas. A segunda parte abordará os desafios de manter a paz no mar, apon- tando as vantagens aditadas às missões de paz pelo aporte das caracte- rísticas intrínsecas de Poder Naval, como mobilidade, permanência, versa- tilidade e flexibilidade. Por outro lado, serão compartilhadas experiências colhidas decorrentes do grande esforço logístico, assim como das pecu- liaridades operacionais impostas pela tarefa de manter um meio naval operando distante de sua base, em uma missão real, de longa duração e com a participação de meios de diferentes países. A última parte do livro tratará das demandas específicas para o ensino e o adestramento às forças e meios navais, aeronavais e de fuzileiros na- vais empregados em operações de paz de caráter naval, as quais reque- rem uma gama de capacidades e competências que divergem daquelas empregadas nas missões de paz em terra. As diferenças do ambiente ope- racional marítimo, as tecnologias presentes nos meios navais e também as distintas interações entre o operador de paz naval e os indivíduos que possam integrar diferentes grupos, como forças adversas, civis sob prote- ção do mandato e nacionais do país anfitrião da missão, impõem conside- rações especiais que serão aqui debatidas.

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Operações de Paz de Caráter Naval: ameaças e desafios para a paz no mar

No âmbito da Marinha do Brasil, em particular no seminário que deu origem ao livro, buscou-se identificar soluções para questões como o en- volvimento do Poder Naval brasileiro no combate a ameaças assimétricas, como pirataria, crimes ambientais, narcotráfico marítimo em nosso entorno estratégico e a atuação em ações sob a égide de organismos internacionais, seja em operações de paz de caráter naval ou em iniciativas para fortalecer a cooperação para a segurança marítima ( maritime security cooperation ). Esta iniciativa atende, ainda, às seguintes demandas próprias da Força: a ampliação da capacidade de conduzir Operações Marítimas Combi- nadas e gerenciar o respectivo conhecimento adquirido; a divulgação de atividades operacionais aos públicos interno e externo; o fortalecimento da Mentalidade Marítima na sociedade brasileira, com foco no conceito oceanopolítico da Amazônia Azul; e a construção de parcerias e o fortale- cimento dos laços que nos unem a países e Marinhas amigas. O seminário esteve inserido em outra iniciativa de relevo no âmbito re- gional: a realização do primeiro Curso Internacional de Operações de Paz de Caráter Naval, que teve início no dia 28 de outubro, com duração de duas semanas, e que foi conduzido pelo Centro de Operações de Paz de Caráter Naval (COpPazNav), localizado no CIASC. Participaram do curso 21 oficiais de Marinhas amigas e nove oficiais da Marinha do Brasil, entre eles o próximo Comandante da FTM-UNIFIL, o Contra-Almirante Sergio Renato Berna Salgueirinho, e seu Estado-Maior. O COpPazNav é responsável pelo treinamento das unidades navais, aeronavais e de fuzileiros navais em operações de paz, particularmente aquelas de caráter naval, e vem contribuindo com seminários e cursos inter- nacionais para a consolidação dos valores da Força e das Nações Unidas. Como se pode notar, são muitos os desafios que se colocam e este é o propósito maior que nos fez reunir por ocasião do Seminário Internacional no CIASC: pensar os desafios estratégicos e a responsabilidade de garantir a Paz, a Segurança e a Boa Ordem no Mar. Como considerações finais, reitero minha satisfação pela presente obra e faço um convite para a leitura das experiências aqui compartilhadas. A Todo Pano! Viva a Marinha!

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Parte I

CAPÍTULO 1 – Atuação da Organização Marítima Internacional (IMO) na área de proteção marítima

CAPÍTULO 2 – Tecnologia, peacekeeping e combate às ameaças assimétricas: oportunidades e desafios em contextos complexos e instáveis CAPÍTULO 3 – Ameaças assimétricas no ambiente marítimo e manutenção da paz: soluções para promover a segurança nacional no contexto marítimo que contribuem para a estabilidade nacional, regional e global

CAPÍTULO 4 – Ameaças assimétricas no ambiente marítimo

Parte I

GISELA VIEIRA

RICARDO OLIVEIRA DOS SANTOS

RICHARD MORRIS

CONTRA-ALMIRANTE (FN) ROGÉRIO RAMOS LAGE

Capítulo 1 Atuação da Organização Marítima Internacional (IMO) na área de proteção marítima

GISELA VIEIRA

O presente artigo discursará, no primeiro momento, sobre uma in- trodução à Organização Marítima Internacional (IMO - International Maritime Organization ) no tocante à sua estrutura e missão. No segundo momento, serão abordadas iniciativas da IMO na área de proteção ma- rítima e quais são os instrumentos que a Organização dispõe para regu- lamentar medidas preventivas face às atuais ameaças. No terceiro mo- mento, o enfoque será no programa de cooperação técnica, no qual são propostas algumas iniciativas regionais na área de proteção marítima. A Organização Marítima Internacional foi estabelecida em 1959 pela convenção da IMO, sediada em Londres. A Organização está composta por 174 estados membros, incluindo todos os países com as maiores frotas marítimas, os estados costeiros e também organizações não gover- namentais e intergovernamentais. O secretariado é composto de mais de 300 pessoas, advindas de mais de 50 países. A IMO é uma agência especializada das Nações Unidas com respon- sabilidade pela segurança e proteção da navegação e pela prevenção da poluição marinha por navios. O órgão principal da Organização é a Assembleia, que conta com todos os 174 estados membros, e os três mem- bros associados. A Organização conta com uma estrutura de Comitês: o Comitê de Segurança Marítima, o Comitê de Proteção ao Meio Ambiente, Comitê Jurídico, Comitê de Cooperação Técnica e o Comitê de Facilita- ção, além do Conselho, que é o órgão governante da Organização. O foco principal da IMO é desenvolver e adotar os instrumentos in- ternacionais e os regulamentos para transporte seguro, eficiente em oce- anos limpos. A implementação e a aplicação ficam a cargo e responsa-

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bilidade dos estados membros. O papel de aplicação das normativas e regulamentos fica a cargo dos estados membros da Organização. Com relação ao avanço das medidas na IMO, tudo se inicia com a necessida- de de revisar o instrumento existente, ou face a algum incidente ou avan- ço tecnológico. A partir de um desses três eventos, um Estado membro ou organização desenvolvem uma proposta para os respectivos comitês, que, dependendo do tema, discutem a proposta, concordam, discordam, chegam a uma minuta de texto e a minuta de texto é adotada pelo res- pectivo comitê ou pelo Conselho e/ou Assembleia. Em outras palavras, um incidente, uma necessidade de revisão ou uma nova tecnologia representam um estopim para a atuação da IMO. Na área de segurança marítima, o estopim para o desenvolvimento de normas e seguranças internacionais foi o caso Titanic. No caso de pro- teção ao meio ambiente, foi o aterramento do Torrey Canyon, que le- vou ao desenvolvimento da convenção MARPOL, e no caso Proteção/ Security , foi o atentado de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas nos EUA. No caso de proteção especificamente, que é o tópico principal do Painel, com os atentados das torres gêmeas, a Organização criou uma conferência diplomática em Londres em dezembro de 2002 e essa con- ferência adotou emendas à Convenção SOLAS ( International Convention for the Safety of Life at Sea ), que até então tratava originalmente apenas na parte de segurança. Com o novo capítulo que foi introduzido na con- venção (Capítulo 11/2: Medidas para fortalecer a proteção marítima), a convenção começou a lidar também com a parte de proteção marítima. Esse capítulo também introduziu o Código ISPS ( International Ship and Port Facility Security Code ). O código traz algumas medidas, como, por exemplo, o Sistema de Alerta de Proteção de Navios, responsabilidade dos governos de definir níveis de segurança, além de trazer uma série de medidas preventivas. Um outro instrumento desenvolvido pela IMO é a convenção para Supressão dos Atos Ilícitos contra a Navegação (Convenção SUA). A Convenção SUA foi adotada em 1988 como uma resposta para a neces- sidade de expandir e regular efetivamente crimes ocorridos no mar. Ela

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tipifica uma série de crimes e também estabelece uma base jurídica para julgar ou extraditar os criminosos. Em 2005, houve uma necessidade de revisar o texto de 1988, pois constataram-se uma série de lacunas jurídi- cas. A convenção de 2005 não só tipifica mais crimes, mas ela também traz uma série de medidas para efetivar o cumprimento das suas disposi- ções, como a previsão de abordagem de navios além do mar territorial. Entre as possíveis ameaças previstas na convenção, estão o uso de navio como arma, o uso de navio para transporte de pessoas ou meios com intenção para causar atos terroristas, o uso de navios de comércio ilícito, o financiamento de atividades terroristas, entre outras. Dentro do tópico do Painel sobre as ameaças, um outro tema que a Organização considerou e para o qual desenvolveu medidas é a questão da segurança cibernética ( cyber security ). A Organização reconheceu que os sistemas de informação de navios podem ser “hackeados” da mesma forma que os sistemas terrestres, e o Comitê de Segurança Marítima de- senvolveu uma série de diretrizes para gerenciar o risco cibernético. Uma outra ameaça contra a qual a Organização atua é a questão dos clandestinos. A convenção de facilitação regula e estabelece medidas preventivas a serem tomadas na interface do navio e do porto, além de melhores práticas sobre como lidar com o clandestino a bordo. Em relação a outro problema que também já foi identificado na apre- sentação anterior, o contrabando, a Organização adotou diretrizes para prevenção e supressão do ato em navios engajados em tráfico marítimo internacional. Na área de proteção marítima, a IMO trabalha em parce- ria com outras organizações da ONU, como a Organização Mundial das Aduanas e o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes. Existem novos desafios surgindo todos os dias. Atualmente, a questão dos navios autônomos está sendo discutida no âmbito do Comitê de Segurança Marítima, do Comitê Jurídico e do Comitê de Facilitação. O tema foi trazido para a Organização pela primeira vez em 2017, e o Comitê de Segurança Marítima decidiu realizar um exercício regulatório para analisar os aspectos de segurança, de proteção e de meio ambiente

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relativos aos navios autônomos. Em junho deste ano, foram adotada as primeiras diretrizes interinas para a fase de testes. Finalmente, no que concerne ao nosso programa de cooperação téc- nica, o programa global para proteção marítima foi iniciado em 2002, logo depois do atentado das torres gêmeas, e é gerenciado pela Sessão de Proteção Marítima. As fontes de financiamento do nosso programa são: um fundo específico para proteção marítima, que é focado na im- plementação do Código ISPS, além de uma pequena parcela do fundo do Programa Integrado de Cooperação Técnica, e, finalmente, de con- tribuições individuais de Estados. Também contamos com um fundo es- pecífico para implementação do Código de Conduta de Djibouti. Nosso programa inclui uma série de visitas junto à diretoria executiva da ONU contra o terrorismo, onde somos parte do time que faz o gerenciamen- to de fronteiras, workshops em caráter nacional e regional na área de proteção marítima e consciência situacional. Também oferecemos trei- namento na área de implementação de Código ISPS, gerenciamento de risco e exercícios simulados para reforçar a necessidade de uma resposta interagências. Também prestamos assistência para o desenvolvimento de estratégias nacionais de proteção marítima, entre outras iniciativas que podem ser encontradas em maiores detalhes na nossa página web. O Programa de Cooperação Técnica funciona à demanda dos países-mem- bros, e conta com um gama de atividades que podemos oferecer quando solicitado por nossos Estados Membros. Sempre que possível, tentando utilizar ou treinar os capacitadores, e também oferecer um guia para que o Estado Membro possa desenvolver o seu próprio pacote de capacita- ção em diferentes temas na área de proteção marítima. Nas iniciativas regionais, cabe rapidamente mencionar a Coope- ração Regional África Ocidental e Central para implementação da es- tratégia de proteção marítima da IMO para a região, e a assistência para implementação do Código de Conduta de Djibuti (acordo não vinculativo entre 21 países da região que está no mapa). Inicialmente,

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o Código de Conduta de Djibuti tinha como escopo o combate a crimes de pirataria e roubo à mão armada. Em 2017, foi alterado o escopo para incluir todas as ameaças e crimes marítimos. Os quatro grandes Pilares do Código são: formação; revisão da legislação nacional e par- tilha de informações; e desenvolvimento de capacitação. O objetivo é estabelecer um regime que tenha um quadro jurídico legal, que atue de forma eficaz com capacidade operacional, e finalmente com uma resposta rápida, que é alcançada através da partilha de informação e consciência situacional. Na área da África Ocidental e Central, nós trabalhamos com base nas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, com base na es- tratégia marítima da União Africana e também na própria resolução da Assembleia. As iniciativas no desenvolvimento de capacitação têm como foco principal os estados membros e o estabelecimento de parcerias para estimular o interesse por coordenação e capacitação a nível nacional e regional.

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Capítulo 2 Tecnologia, peacekeeping e combate às ameaças assimétricas: oportunidades e desafios em contextos complexos e instáveis

RICARDO OLIVEIRA DOS SANTOS 1

Introdução Gostaria de agradecer à Marinha do Brasil, por meio do Comando- Geral do Corpo de Fuzileiros Navais (CGCFN) e do Centro de Operações de Paz de Caráter Naval (COpPazNav), e à Organização das Nações Uni- das (ONU) pelo honroso convite para participar do Seminário Internacio- nal de Operações de Paz de Caráter Naval, realizado nas dependências do Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC). O primei- ro painel deste evento, “Ameaças assimétricas no ambiente marítimo no peacekeeping ”, é uma excelente oportunidade para a troca de ideias, ex- periências e boas práticas, bem como para a proposição de soluções aos principais desafios enfrentados pelas Operações de Paz da ONU. Seguindo a minha linha de contribuição acadêmica ao CIASC 2 , pre- tendo avançar em duas frentes durante a minha exposição. Em primeiro lugar, refletirei sobre o nexo envolvendo o enfrentamento das ameaças 1 Coordenador Adjunto da Graduação (2017 - ) e Professor do Quadro Complementar (2015 - ) do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Foi Professor Substituto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DCP/UFRJ) entre 2014-2016. Doutor em Econo- mia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ). Possui graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Foi Professor Visitante do Instituto Multinacional de Estu- dos Americanos da New York University (2019) e Visiting Research Fellow do Departamento de Ciência Política da Brown University (2012). 2 SANTOS, Ricardo Oliveira dos. Extraindo lições a partir de velhos problemas: superando os desafios humanitários para além da MINUSTAH. In: BRAGA, Carlos Chaga & FERREI- RA, Adler Cardoso (Orgs.). 13 anos do Brasil na MINUSTAH: lições aprendidas e novas perspectivas. Rio de Janeiro: Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo, Escola de Operações de Paz de Caráter Naval. 2019. pp. 157-164.

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assimétricas no sistema internacional, as Operações de Paz e o em- prego de tecnologias de informação, comunicação e combate. Assim sendo, à luz de um estado da arte sobre o assunto, objetivo discorrer sobre como tais avanços tecnológicos podem contribuir para as ativi- dades de enforcement , monitoramento, vigilância, transporte e ajuda humanitária. Neste sentido, será demonstrado como tal desenvolvimen- to potencializa mecanismos de coordenação entre os componentes mi- litares, policiais e civis, além de permitir a construção de soluções para algumas funções voltadas para a proteção de civis e de todo o pessoal presente no teatro de uma missão de paz. De igual modo, nesta primei- ra parte, buscar-se a entender como as tecnologias superam desafios logísticos, operacionais e táticos, gerando eficácia, efetividade e ações cívico-militares satisfatórias. Em segundo lugar, diante da atuação em ambientes cada vez mais instáveis e complexos e da reconhecida ne- cessidade de modernização de alguns aspectos no nível estratégico, operacional e tático das Operações de Paz, voltaremos nossa atenção para os principais dilemas, desafios e limitações relacionadas ao pa- pel que estas tecnologias podem exercer para toda a comunidade de peacekeepers , particularmente para os Estados que mais contribuem com tropas (TCC’s – acrônimo em inglês). Por fim, a última parte con- clui apresentando algumas soluções de modo a superar lacunas entre a dimensão tecnológica e política. Em julho de 2009, o então Departamento de Operações de Manu- tenção da Paz (DPKO - acrônimo em inglês) e o Departamento de Su- porte no Campo (DFS - acrônimo em inglês) publicaram um relatório intitulado A New Partnership Agenda: Charting a New Horizon for United Nations Peacekeeping . O objetivo central era fortalecer as Operações de Paz diante dos crescentes e complexos desafios políticos, econômi- cos e institucionais no terreno e no campo (DPKO/DFS, 2009, p. 10). Para tanto, estabeleceu como meta um diálogo contínuo entre as partes relevantes de modo a renovar ininterruptamente o compromisso de to- Tecnologia como resposta às ameaças assimétricas no contexto das operações de paz

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dos com as causas da paz e segurança internacional: Estados-membros, organizações intergovernamentais e não governamentais, e atores da sociedade civil (Ibidem). Para efeitos de delimitação, é digno de nota destacar a abordagem introduzida pelo New Horizon conhecida como capability-driven approach , que busca “melhorar a performance da ma- nutenção da paz no terreno, vinculando tarefas e padrões operacionais claros a programas de capacitação e treinamento, equipamentos e ne- cessidades de suporte e, conforme o caso, incentivos para a realização de tarefas obrigatórias” 3 (ibid., p. 6, tradução própria). Desde então, di- versos esforços foram conduzidos no sentido de alcançar este paradigma em prol do incremento das capacidades militares, policiais e civis 4 – prin- cipalmente do ponto de vista tecnológico. No contexto da sexagésima sétima sessão, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 2013, adotou a resolução 67/301, em resposta ao trabalho de revisão compreensiva desenvolvido pelo Comitê Especial das Nações Unidas sobre Manutenção da Paz 5 (A/RES/67/301, 3 “ seeks to improve the performance of peacekeeping on the ground by linking clear opera- tional tasks and standards with capacity-building and training programmes, equipment and support needs, and, as appropriate, incentives to deliver mandated tasks ” . 4 No mesmo ano de publicação do New Horizon , o Secretário-Geral das Nações Unidas publicou um relatório Peacebuilding in the Immediate Aftermath of Conflict ressaltando a importância e centralidade dos civis no processo de reconstrução de sociedades afetadas por conflitos armados (Karlsrud, 2017, p. 286). No ano seguinte, Ban Ki-moon iniciou uma reforma de incremento da capacidade civil das Nações Unidas estabelecendo um Grupo Sênior de Aconselhamento Independente, liderado pelo Subsecretário-Geral Jean-Marie Guéhenno (Ibidem). O objetivo deste Grupo era tornar mais efetiva a presença civil em processos formais e informais de peacebuilding (Ibid.). 5 O referido Comitê, mandatado para conduzir uma revisão compreensiva de todas as ques- tões relacionadas às Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas, apresenta re- latórios anuais à Assembleia Geral das Nações Unidas apontando as diretrizes necessárias de reforma (Dorn, 2011, p. 225). Desde o final da década de 1980, o Comitê já discorria acerca da necessidade de explorar caminhos legais, políticos, econômicos, e éticos necessá- rios para o emprego de mecanismos tecnológicos nas atividades de paz e segurança interna- cional (ver as resoluções: A/44/301, 1989; A/45/330, 1990; A/46/254, 1991; A/47/253, 1992) (Ibidem). Após os três grandes fracassos da organização durante a década de 1990, na virada do século, o Comitê, em diferentes ocasiões, destacou a urgência do uso amplo e sistêmico de alta tecnologia nas Operações de Paz, tanto no terreno como no escritório (ver as resoluções: A/55/1024, 2001; A/59/19/Rev.1, 2005; A/60/19, 2006; A/61/19, 2007; A/62/19, 2008; A/63/19, 2009; A/64/19, 2010) (Ibid.).

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2013). O documento, além de congratular os esforços em curso à época referente ao reexame do modus operandi das atividades de manutenção da paz e segurança, demandou que tanto o Secretário-Geral quanto o próprio Comitê em questão submetessem relatórios adicionais para con- sideração futura dos Estados membros a respeito dos caminhos possíveis de reforma em algumas áreas estratégicas (Ibidem). Três meses depois, Ban Ki-moon apresentou alternativas que pode- riam ser exploradas diante dos principais desafios que “impactam o tra- balho dos mantenedores da paz” (A/68/652, 2013, p.2). Reconhecendo o aumento da complexidade dos conflitos e a presença de ameaças não convencionais, como no caso do Mali e República Centro Africana; des- tacando a diversidade de parceiros regionais; e identificando os efeitos negativos da crise econômica global, que vem produzindo restrições or- çamentárias expressivas na organização; Ban Ki-moon sugere que “no- vas tecnologias, habilidades e métodos” sejam empregados em favor das causas basilares da ONU (Ibidem). No mesmo relatório, o Secretário- Geral reconhece que a tecnologia já “apoia uma ampla gama de tarefas nas operações de manutenção da paz das Nações Unidas além daquelas realizadas pelos militares e pela polícia, incluindo, por exemplo, unida- des de informação e comunicação, suporte médico e funções de análise e relatório” 6 (ibid., p.17 – tradução própria). Cabe lembrar que neste momento veículos aéreos não tripulados (VANT) já estavam sendo em- pregados na República Democrática do Congo (RDC) com o objetivo de incrementar o conhecimento da situação do terreno, a capacidade de early-warning e a segurança e proteção dos capacetes azuis (ibid.). Em resumo: Ban Ki-moon sugere que a efetividade do peacekeeping para o combate às ameaças assimétricas está diretamente relacionada ao em- prego de novas tecnologias.

6 “ supports a wide range of tasks in United Nations peacekeeping operations beyond those undertaken by the military and police, encompassing, for example, information and communications units, medical support and analysis and reporting functions ”

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No ano seguinte 7 , num momento em que várias questões legais, ope- racionais, técnicas e financeiras dos VANTs estavam sendo consideradas, o Painel de Experts em Tecnologia e Inovação das Operações de Ma- nutenção de Paz das Nações Unidas, convocado pelo próprio Secretá- rio-Geral, publica o relatório Performance Peacekeeping ressaltando a urgência de adaptação dos peacekeepers à nova revolução tecnológica global ( United Nations , 2014, p.3). De acordo com o documento, as tecnologias e inovações possibilitam, em linhas gerais, o aumento da se- gurança e proteção dos peacekeepers , o revigoramento da capacidade de resposta e a condução de mandatos de forma mais efetiva (Ibidem). Presidido por Jane Holl Lute 8 , o Painel considera que o emprego de no- vas tecnologias fortalece a conscientização relativa à situação no terre- no, produzindo melhoria na proteção dos riscos aos quais os civis são expostos continuadamente; potencializa a capacidade de antecipação dos ataques cometidos por elementos hostis, detendo, assim, violações aos direitos humanos – principalmente de grupos vulneráveis (crianças e mulheres); e a classificação e organização visual de informações, tornan- do-as mais seguras e fornecendo caminhos mais estáveis para o processo de tomada de decisão nos diferentes níveis (Ibid.). Do ponto da interação com os civis, há um entendimento comparti- lhado entre os experts de que um maior número de tecnologia de infor- mação e comunicação eleva os canais de interação, diversificando, por 7 Ainda em 2014, a Divisão de Tecnologia de Comunicação e Informação do então Depar- tamento de Suporte no Campo (DFS – acrônimo em inglês), estabeleceu o Partnership for Technology in Peacekeeping com o objetivo de expor as Nações Unidas às mais recentes abordagens de inovação e tecnologia que potencialmente podem fortalecer as Operações de Paz da Organização ( Department of Operational Support , 2019). Desde a sua criação, simpósios internacionais são organizados como forma de facilitar a contribuição de tecno- logia por parte dos Estados membros da organização (ibidem). 8 Jane Holl Lute foi Secretária Adjunta do Departamento de Segurança Nacional dos Esta- dos Unidos (2009-2013), Assistente do Secretário-Geral das Nações Unidas no Escritório de Suporte à Construção da Paz e no Setor de Suporte à Missão do DPKO ( Center for International Security and Cooperation , 2019). Além disso, exerceu diversos cargos na iniciativa privada na área de cyber segurança e drones (Ibidem).

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sua vez, a rede de peacebuilders 9 (Karlsud, 2018, p. 62-64). Adicional- mente, possibilita a transmissão de feedbacks mais rápidos, ajudando a missão a compreender e integrar melhor as percepções do everyday nas diretrizes estabelecidas pela missão (Ibidem). Por fim, não exaustivamen- te, o aumento do acesso às plataformas digitais de comunicação garante um engajamento expressivo com a população local em termos de nego- ciação, conciliação e outras ações para a acomodação de demandas e reivindicações por meios pacíficos (Ibid.). Assim como no caso da RDC, onde smartphones foram distribuídos para algumas lideranças locais, tal iniciativa poderia ser expandida para outros contextos com o intuito de ampliar as repostas de proteção para a população local (Ibid.). Para que tais objetivos sejam alcançados, é mister que os Esta- dos membros contribuam com expertise tecnológica nas categorias de Civilian-Contributing Countries (CCCs) e de Technological Expertise Contributing Countries (TechCCs), complementando desta forma os es- forços já existentes dos Troop Contributing Countries (TCCs) (Ibid., p. 73). A integração desta rede possibilitaria o rápido desdobramento de tropas, a partir de um ambiente seguro de trocas de informações e comunica- ções, além de possibilitar caminhos mais efetivos para a proteção de civis (Ibid.). A despeito da baixa receptividade de muitos pontos apresentados pelo Painel, os membros que integram esta iniciativa vêm reforçando a ideia de que diante das ameaças assimétricas, somado ao baixo custo e a necessidade de responder aos novos desafios do estado da guerra contemporâneo, as tecnologias poderiam superar diversos desafios lo- gísticos, operacionais e táticos. Entretanto, conforme será abordado na próxima seção, há uma série de desafios e barreiras a serem superadas para avançar nas proposições apontadas pelo Painel.

9 Com o aumento da rede de construtores da paz, os mecanismos para a transformação dos conflitos tendem a ser ampliados, gerando uma possibilidade de sucesso para as missões. No contexto em que o estado da guerra se torna cada vez mais informatizado, as Nações Unidas estão sendo pressionadas a atuar de forma cada vez mais integrada às plataformas digitais para se conectar mais com as pessoas, fortalecendo abordagens locais e sustentáveis para a paz (Karlsrud, 2017, p. 273-275).

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Barreiras e desafios ao emprego de tecnologias nas Operações de Paz das Nações Unidas Além da expressiva contribuição de tropas a partir da década de 1990, Estados do Sul Global 10 , vêm engajando-se ativamente nos deba- tes relacionados à prática e doutrina das Operações de Paz das Nações Unidas (Abiola et al., 2017, p. 172). Inserindo-se nas reflexões acerca de novas tendências deste instrumento multilateral para a gestão e re- solução de conflitos, os TCCs apresentam algumas ressalvas sobre o emprego de novas tecnologias, principalmente no que concerne o acesso à informação coletada pelos VANTs, o prejuízo à soberania dos Estados, o tipo de treinamento específico para operar determinados aparelhos, e, não exaustivamente, as implicações financeiras sobre o orçamento do Departamento de Operações de Paz (Abiola et al., 2017, p. 172). Na interpretação de alguns analistas, a tecnologia é o tema que mais evidencia o dilema contemporâneo das Operações de Paz das Nações Unidas: o gap entre Norte e Sul Global (Abiola et al., 2017, p. 152-153; Karlsrud, 2017, p. 272). Uma vez que estes instrumentos de inovação não são fornecidos pelos TCCs, e diante da grande dificuldade de trans- ferência, há um receio de que esta tendência apontada pelo Painel possa agravar ainda mais a clivagem entre aqueles que detêm e não detêm tec- nologia, fomentando um apartheid peacekeeping 11 (Ibidem). Adicional- mente, é digno de nota apontar que esta mudança paradigmática pode representar a introdução do vocabulário da inteligência nas Nações Unidas, instrumentalizando e monopolizando os processos de coleta de informação para fins militares (Ibid.). Diante da falta de uma cultura insti- tucionalizada da organização para a coleta de informação estruturada e de identificação de informações e necessidades estratégicas prioritárias, 10 Para uma discussão pormenorizada sobre a participação dos Estados do Sul Global nas Operações de Paz das Nações Unidas, ver: CUNLIFFE, Philip. Legions of Peace: UN Peacekeepers from the Global South. C. Hurst & Co: London . 2013. 11 Terminologia empregada em 2005 por Jean-Marie Guéhenno, então Subsecretário-Ge- ral das Nações Unidas para as Operações de Manutenção da Paz, que denota o envolvi- mento assimétrico dos Estados mais ou menos desenvolvidos no universo do peacekeeping (Abdenur, 2019, p. 52).

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a tecnologia pode ser mobilizada para abordagens desenvolvidas fora dos auspícios onusianos – levando a perda das capacidades relativas da organização (Ibid.). Uma possível associação no campo com a guerra global ao terror, na qual instrumentos de inteligência são empregados como forma de alcançar os objetivos das operações militares das gran- des potências, pode levar à uma perda de investimentos diretos para pa- íses em desenvolvimento do Sul – como é o caso de Bangladesh e Nepal (Abiola et al., 2017, p.155-162). Do ponto de vista político, ainda que alguns Estados africanos não demonstrem oposição para o uso robusto da força e o emprego de mecanismos de combate modernizados, a repu- tação política em outros fóruns, como é o caso dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) pode ser prejudicado (Ibidem). Sendo assim, a tecnologia pode contribuir para o acirramento da atual divisão do tra- balho nas Operações de Paz. Como forma de superar os desafios apresentados por sucessivos rela- tórios, documentos-projeto e resoluções, os TCCs, que correspondem à mais de 70% do pessoal militar e policial empregado no terreno, defendem uma maior participação no processo de tomada de decisão – evitando, desta forma, uma mudança repentina na condução das Operações de Paz (Ibid.). Ainda que alguns Estados, como é o caso do Brasil, venham gradativamente contribuindo para uma transição de postura, já que vem participando ativamente de missões robustas do uso da força 12 , a posição discursiva é a de que se deve investir mais em processos políticos e não apenas em inovações tecnológicas (Ibidem, p. 164-165). Ou seja, o êxito para a mudança dos conflitos, independente das suas configurações, são obtidos pela capacidade histórica de mediação e negociação das Nações Unidas. A crescente informatização das Operações de Paz acabaria elimi- nando este componente, transferindo as atividades de manutenção de paz e segurança para uma dimensão não humana, produzindo, desta forma, uma série de desafios significativos.

12 Para detalhes sobre a participação do Brasil nas Operações de Paz das Nações Unidas e a relação com o uso da força, ver: HAMANN, Eduarda. A Força de Uma Trajetória: O Bra- sil e as operações de paz da ONU (1948-2015). Rio de Janeiro: Instituto Igarapé. 2015.

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